Moral Disorder (Margaret Atwood)

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Eis que amanhã (31/08) será lançado o tão aguardado Maddaddam, terceiro livro da trilogia de mesmo nome de nossa escritora canadense favorita: Margaret Atwood. Então, lembrei que há algum tempo, minha amiga Nathália havia me pedido um texto que seria publicado em uma revista. Infelizmente, a revista não chegou a ser publicada e fiquei com um texto novinho esquecido e acumulando pó nas entranhas do gmail. O texto deveria ser nos moldes do que costumo escrever por aqui, sobre um livro de que tivesse gostado muito. Logo, decidi escrever sobre Moral Disorder, da Margaret Atwood, um dos meus favoritos até hoje (por diversos motivos, entre eles, identificação pessoal).

Tenho muitas saudades de escrever de forma tão prolífica, como fazia naquela época (2010 e 2011). Boa leitura!

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Moral Disorder ou, em português, Transtorno Mental, é um dos livros mais recentes da escritora canadense Margaret Atwood. O subtítulo and other stories (“e outras histórias”) dá a entender que se trata de uma coletânea de contos esparsos, porém, com o desenvolvimento da leitura, percebemos que as 11 histórias, aparentemente desconexas, traçam a vida de uma personagem chamada Nell desde a infância (uma irmã preocupada com os afazeres da casa) até o momento presente (uma senhora vivendo com seu companheiro Tig).

As histórias em cada conto giram em torno da vida da personagem e de seus familiares, incluindo os animais que com eles convivem, os amigos (tanto os vivos quanto os que já faleceram) e dois personagens de um livro que sua mãe lê para seu pai quando cego. Já o cenário das histórias alterna-se entre um Canadá urbano em desenvolvimento, com suas cidades grandes, e com um país rural, com suas ilhas, seus rios, sua natureza selvagem, suas fazendas e, claro, sua neve.

Se tomarmos o livro como uma unidade, percebe-se que o principal conflito presente em cada história é o de interesses e comportamentos entre gerações. E eles ocorrem não apenas entre a personagem principal e os que a cercam, mas também entre ela e ela mesma por meio dos muitos questionamentos feitos acerca de suas atitudes e de seus desejos.

Aos onze anos, Nell idealiza sua vida adulta e, para isso, “consulta” o livro de receitas intitulado The Art Of Cooking and Serving (“A arte de cozinhar e servir”), de Sarah Field Splint (o livro existiu de verdade) como uma espécie de manual de comportamento, buscando respostas sobre como agir de acordo com o que se espera de uma mulher responsável. Segundo a personagem, os dois capítulos que introduzem o volume serviam como “janelas” para outro mundo, com regras de bom comportamento ditadas por Splint. Essa história (ou capítulo) é uma das mais interessantes do livro, pois introduz o primeiro modelo de influência na vida de Nell, mais importante, inclusive, do que a influência exercida por sua própria mãe.

O momento de transição da infância para a vida adulta ocorre com a introdução na narrativa de uma personagem emblemática: a professora de inglês Miss Bessie. Emblemática, pois se trata do segundo grande modelo na vida de Nell, quem mostra à personagem a beleza e os desafios de trabalhar com literatura. Diferentemente de Sarah Field Splint, a professora representa trabalho, autonomia e disciplina, além de despertar em seus alunos o gosto para a interpretação dos textos literários. E é justamente por causa de um poema que Nell briga com Bill, seu namorado do colégio. Os dois estudavam para uma prova quando passam a discutir sobre as diversas leituras que um poema pode suscitar de tal modo que terminam por romper o namoro. A personagem chega em casa e começa a ler avidamente um romance para esquecer de Bill e da briga que tiveram.

No entanto, a mudança mais radical na vida de Nell acontece quando ela, adulta, começa a trabalhar para algumas editoras. É a partir desse momento que a narrativa muda de voz, da primeira para a terceira pessoa, tornando-se um pouco mais difícil para os leitores terem acesso aos pensamentos da personagem que, por sua vez, se torna cada vez mais complexa. A história (ou capítulo) que marca essa mudança é Monopoly (em português, o título remete ao jogo de tabuleiro “Banco Imobiliário”). Essa passagem narra as circunstâncias em que Nell conhece Oona, uma escritora de sucesso que vive uma vida perfeita, no melhor estilo The Art of Cooking and Serving ao lado do marido e dos dois filhos. Nell admira o trabalho de Oona e as duas passam a trabalhar juntas em um livro assinado por Oona e escrito por Nell (como uma “ghostwriter”). Porém, o casamento entre Oona e Tig está deteriorado e eles optam pela separação. Tig, então, adquire uma fazenda no interior para lá viver com Nell, sua nova companheira.

Nota-se o fascínio que essas três mulheres exercem sobre a personagem Nell. Inicialmente, elas operam como modelos para que a personagem projete seus anseios para o futuro. No entanto, Nell acaba por transpor, ou mesmo subverter esses modelos de moral e comportamento que lhe foram oferecidos. Primeiro, quando vê a literatura como uma oportunidade mais importante do que o sentimento que sente por Bill, e acaba “escolhendo” a literatura e os ensinamentos de Miss Bessie, um modelo a ser seguido. Em seguida, na adolescência, após travar contato com os ensinamentos de Miss Bessie, questiona-se acerca dos valores presentes em “A arte de cozinhar e servir”, percebendo que Sarah representava um modelo a ser desconstruído. Por fim, quando conhece Oona e Tig, resolve “fugir” (ela mesma não está certa dessa expressão) com ele e viver um romance moralmente “proibido” com um homem divorciado e com filhos, causando revolta na própria família e o gradual adoecimento de Oona, um modelo a ser superado.
Por fim, por que é tão interessante ler Moral Disorder?

Margaret Atwood narra com maestria as diversas etapas da vida de uma personagem e a maneira como a mesma lida com seus anseios e suas expectativas perante os outros e si mesma. Além disso, Nell mostra que seus anseios quando criança e adolescente se dissipam na idade adulta e que a idade madura, tanto com o envelhecimento e morte dos pais quanto pela própria experiência face a um mundo que se desintegra a sua frente, é um mistério que deve ser abraçado com serenidade.

Vários críticos afirmam que o livro possui respingos autobiográficos de Atwood, e que muitas das passagens remontam à sua infância, às influências literárias e à vida com seu atual companheiro. Independente da veracidade dos fatos narrados, Moral Disorder é uma rica experiência de leitura para leitores sensíveis à vida de uma personagem singular e de uma mente muito frente de sua geração.

 

Edição:

ATWOOD, Margaret. Moral Disorder and other stories. New York: Anchor Books, 2006.